[MUSIC] Lady Gaga - Mayhem
Com o timing tão bom quanto o do time da cantora Jade, cá estou com minha análise sobre o mais novo álbum de estúdio de Lady Gaga, Mayhem. Parte da culpa desta demora está na minha vida pessoal, pois priorizei quarenta outras coisas, mas tem um pouco também de um choque inicial com o som do álbum, que me fez levar um tempo para digerir a coisa toda. E também, depois que o processo havia começado, achei que poderia valer a pena esperar pelo Gagachella/Gagacabana para ver se as performances ao vivo engrandeceriam algumas das faixas. E digo sem receios que a espera teve um enorme efeito positivo.
Como sempre quando temos Lady Gaga em pauta, a construção do lançamento de Mayhem não foi apenas sonora, mas também visual. E quando digo visual, não me refiro (apenas) a videoclipes, mas também e ainda mais especialmente aos visuais que a cantora usa nas ruas, em entrevistas, ensaios e assim por diante. Em qualquer era, você pode pegar uma foto de Gaga saindo de um hotel, num videoclipe ou mesmo em uma performance e de cara vai perceber se é algo do The Fame, Joanne (pro bem, ou pro mal), ou do Born This Way, seja pela roupa, pela maquiagem ou pelo cabelo.
Nesta era, desde o começo estava posta a dualidade que seria trabalhada: Em entrevista ao Spotify, um corte de cabelo curto preto, numa mistura de David Bowie e Siouxsie Sioux, em roupas quase futuristas; depois, no Hot Wings uma longa peruca loira, roupas brancas, rendas e flores. Quase não parecia ser a mesma pessoa, e a ideia era essa mesmo. Num primeiro momento, parece um movimento clichê. O confronto dos dois lados de Lady Gaga não é algo completamente inédito para ela mesma, nem muito menos no mercado fonográfico como um todo. A Koda Kumi, por exemplo, ficou trabalhando dualidades de 2017 a 2023 sem parar, e a nossa icosaedro do pop Anitta se extrudou em mais lados que a geometria euclidiana jamais permitiu desde que ela começou a pisar na gringa. O trunfo de Gaga, porém, não foi em enfatizar como esses dois lados eram totalmente distintos (à lá o excelente I am Sasha Fierce da Beyoncé ou o tenebroso Love + Fear da Marina), mas sim trabalhar os conflitos que tal dualidade acarreta. Mayhem, apesar do que o nome sugere inicialmente, é um álbum coeso, narrativo. Os moods das músicas na tracklist formam uma boa sequência, tanto que o álbum foi quase que performado em ordem nos concertos deste ano. O xis da questão não é a existência de um externo e um interno, uma Gaga e uma Joanne. É, porém, como esses dois lados podem batalhar um ao outro e se autocanibalizarem. E no meio disso tudo temos fama, enfermidades, drogas e música. É sobre esses elementos que Mayhem se constrói.
Tomando o single inicial da era, Disease como pauta, não haveria escolha melhor para abrir a era ou mesmo o álbum (ainda que sonoramente não tenha sido o que eu esperava para o comeback, mas passei a apreciar com o tempo). Não é a primeira vez que Gaga canta sobre doença e cura, e inclusive a nossa italianinha chegou a lançar uma música nomeada The Cure da outra vez que subiu aos palcos do Coachella. Mas nunca ela explorou tão visualmente sua própria doença, a fibromialgia, e suas lesões. Cenas do videoclipe dela lutando consigo mesma, de Gaga dançando sobre seu próprio corpo retorcido ao chão, todos esses conflitos nos contam como houve, e há, uma batalha de seu corpo com ele mesmo. E tudo isso enquanto uma figura sinistra e soturna observa e conduz tudo de fora, figura que mais tarde seria oficialmente batizada de Mistress of Mayhem. Olha o verso fechando lá no final.
O chute com dois pés na porta vem em Abracadabra, onde mais uma vez há uma tensão entre duas figuras de Gaga, mas aqui sem contato físico entre elas. "Dance or die", a figura de Mayhem diz logo ao início, e aqui temos uma enorme síntese do que é este álbum. É a própria Gaga dizendo a si mesma que ela deve dançar, ou vai morrer, desaparecer. Mas ao mesmo tempo ela pode morrer nessa dança. A figura de bruxa que Gaga cria de sua Mistress of Mayhem é ainda mais impactante na performance ao vivo, onde ela ao mesmo tempo se sustenta dos dançarinos mas também os aprisiona. A dança faz parte da estrutura de quem ela é, mas pode ser também um confinamento, até uma sentença. Outro detalhe interessante, é que muitas das roupas do clipe foram feitas a partir de outras roupas antigas de Gaga e sua equipe, já pincelando as revisitas ao passado que teríamos.
Aqui, se Gaga quisesse, poderia ter mantido a sonoridade e as composições das duas primeiras faixas pelo resto do álbum todo e agradaria muita gente de cara. E era, honesta e inconscientemente, o que eu esperava, e por isso um choque inicial com o álbum completo. Mas se tem algo que Gaga adora é um twist, e ao invés de ir para o dark-pop modernizado do The Fame Monster, ela viaja às raízes do começo de tudo, seu primeiro álbum The Fame. Com as referências aqui ainda mais explícitas, passando claramente por Michael Jackson, David Bowie e Prince, parece que Gaga tenta voltar ao início de tudo buscando entender como ela se estruturou como a figura que é hoje. Resgatando o retro-pop do The Fame, mas tendo agora toda a bagagem que acumulou nesses mais de 15 anos, Gaga encontra um ótimo equilíbrio entre referenciar e deixar sua marca. Vanish Into You, por exemplo, tem uma liricidade lindíssima e um controle vocal teatral que ela (nem ninguém) jamais conseguiria fazer em um começo de carreira. Foram anos de performances, passando pelo jazz, rock e tudo mais, que ela conseguiu as peças para montar essa canção avassaladora.
How Bad Do U Want Me pode parecer inicialmente uma música que sairia de um álbum retro-synth tal qual o maravilhoso E•MO•TION da canadense Carly Rae Jepsen, mas na sua ponte temos Gaga cantando daquele seu jeito grave característico que soa quase como um resgate do que ela usou e abusou em The Fame Monster. Em Shadow of a Man, temos dubsteps saídos de ARTPOP mas muito bem colocados na base da música, sem sobrepor o som referenciado, mas deixando um pouco da assinatura de Gaga na faixa e una aura mais atualizada. Ou ainda em Garden of Eden que temos elementos de rock mesclados ao pop chiclete que ela fez tão bem no Born This Way. Mayhem é um show de autenticidade e certeza, deixando toda a flanderização* do Chromatica no chinelo.
*[Disclaimmer: Adicionei depois essa observação, pra explicar melhor o termo pra quem não conhece, mas é basicamente um processo pelo qual um personagem (ou artista) vai aos poucos se tornando uma versão mais rasa, simplificada e exagerada de si mesmo. Se numa primeira temporada, o personagem X às vezes não tinha tato social nenhum, até a sexta temporada ele acaba virando uma máquina de estupidez, aos poucos seus roteiristas tentando enfatizar aquela sua marca e o tornando menos complexo. Ou a personagem Y que é meio burrinha, e temporadas depois chega a ser uma porta sem maçaneta. Afinal de contas aquele básico serviu na primeira temporada mas agora precisa ir além e além no escrachado. Confesso que foi um pouco o que senti com Chromatica, várias faixas me soavam como alguém querendo emular um som de Lady Gaga ao invés de ter a própria Gaga ali, especialmente no primeiro ato do álbum.]
E assim, aos poucos, Gaga revisita a si e de onde veio, e no meio de todo o mayhem que o estrelato e a saúde criaram, encontra um lugar de libertação, de autoafirmação e, principalmente, resolução. Isso é diretamente refletido em seu espetáculo: a "Gaga" mascarada de Poker Face é imediatamente reconhecida como ela mesma pelo público, assim como identificamos a armadura-muleta da Mugler de Papparazzi, agora quase que num local de profecia do que viria a lhe acontecer. O show, ainda por cima, adiciona muitos momentos de agradecimento aos seus fãs, que abraçam o seu lado monstro que ela teme que jamais será entendido ou amado. E por isso ela falou tanto também em cura, pois ela passou por uma jornada de glória, abandono e recuperação até chegar ali, depois de tanto testar seus limites, megalomanias e potências.
Não é exatamente desta era, creio eu, uma entrevista em que Gaga fala sobre os antigos rumores de que ela seria um homem ou hermafrodita, de que não fosse uma mulher cis. Mas aqui trago ainda o que fala logo depois desse momento: Ela critica quem diz que suas performances teatrais não são "a real Gaga", são apenas entretenimento. E diz que, na verdade, nossas performances são a coisa mais autêntica que fazemos. E isso é extremamente certeiro. É em nosso exagero, em nossa arte, em nossa poesia que expressamos aquilo que não seria exposto de outra maneira, e é na performance que deixamos nossa marca. Seja numa tatuagem, num corte de cabelo diferente, numa roupa que foge do convencional, é quando nos forçamos a sair do usual que caímos no que nós buscamos ser. Em tantos momentos do show, Gaga reforça como ela e seus fãs têm espírito, energia, amor, como seguimos lutando e vivendo, e é sobre isso que a ópera de Mayhem canta do início ao fim. Caímos, adoecemos, choramos, mas também amamos, levantamos, seguimos e juntos criamos ainda mais força e garra. Cada um em sua autenticidade, em sua unicidade, é uma potência imparável, e poder ser quem somos, nos vestir de autenticidade e exagero numa era de clean girls em cores apagadas e farialimers de camisas brancas e azuis, esse é o maior ato que podemos fazer por nós mesmos, sem esconder quem somos, e bradando que não cedemos a uma norma imposta goela abaixo.
É justamente no caos que florescemos.
⭐️⭐️⭐️⭐️⭐️
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