[MUSIC] Allie X - Girl With No Face



Há muitos, muitos anos, numa distante e milenar rede social, cujo nome era Tumblr, conheci a intrigante artista Allie X. Intrigante por vários motivos, e todos positivos, mas de maneira resumida intrigante pelos visuais que construía em torno de sua música. Uma pena que pra mim, na época, me limitei àquele conhecer de rede social: ouvi algumas músicas, um bocado de clipes e repostava trezentos gifs por semana. Fã mesmo assim fã FàFàeu virei na época do retrô e envolvente Super Sunset, mas fiquei na dúvida logo depois com o morno Cape God. Não que fosse um trabalho ruim, mas honestamente não acho que foi um trabalho que a permitiu brilhar com muito vigor, parecia ter faltado um pouco de maturação no projeto em si e no tempero do mesmo. Pois essa frustração foi mais do que compensada com o maravilhoso Girl With No Face.

Quando o primeiro trabalho da era, Black Eye, foi lançado senti como se meu cérebro e demais órgãos tivessem berrado "ISSOOOO!!!" com todas as suas forças. O som profundo e cheio de camadas era quase uma viagem no tempo, com fortes tons de New Order, The Human League e Depeche Mode. Foi uma das melhores coisas que poderia ter ouvido em 2023, em especial porque não parecia tentar emular aquele som produzido na atualidade, mas realmente CONSEGUIA replicar aquelas produções numa nova escala. O clipe que acompanha a faixa também se tornou obrigatório na televisão de casa, mostrando Allie em uma espécie de xadrez humano, em outros momentos sendo a filha da Kate Bush em Babooshka que vocês não queimaram, e sempre rodeada de pessoas mascaradas. Quando recebemos o anúncio do álbum, o título caiu como uma luva na proposta entregue neste primeiro single.


Tendo produzido quase todo o disco sozinha, o resultado é um álbum que talvez (provavelmente) não seria tão redondo se fosse dividido entre diversos produtores e estúdios, mas  ao mesmo tempo ele não se torna uma repetição dos mesmos sons e rimas por uma infinidade de faixas. Cada peça em Girl With No Face é um capítulo essencial na narrativa, sem fillers. E Allie toma muito cuidado com isso, pois em uma das entrevistas que deu logo que o álbum foi lançado, chegou a citar uma parceria com Tove Lo que acabou não se encaixando no álbum. Num outro cenário, o feat teria sido posto a força no álbum para angariar streams, mas pelo jeito esse não era o momento.

Quanto às faixas em si, nenhuma poderia ser melhor para abrir o álbum do que Weird World, que além de ditar o tom e a sonoridade de todo o resto, ainda tem Allie X refletindo sobre, bom, o mundo estranho em que estamos, e em certa medida buscando a paz consigo mesma por não ser uma dream girl, e sim uma weird girl. E logo em sequência temos Girl With No Face, que foi pra mim foi a mais intrigante e envolvente da obra toda, com vocais que às vezes são sussuros, instrumentos que às vezes incomodam no ouvido mas na medida certa. E essas duas são faixas "anteriores" ao álbum em si, que surgiram bem antes das demais, no mundo pré-pandemia mas Allie sentiu que era aqui que elas entrariam, certeiramente.



O álbum todo é recheado de referências e inspirações que enriquecem toda a obra, sem deixá-la cair numa emulação genérica do synthpop/darkwave. Além dos que já citei, temos referências da época um pouco menos óbvias como Pet Shop Boys, Madonna, e coros saídos de um álbum do Queen. Tudo muito bem colocado aqui. Diria que Staying Power é um ponto alto do álbum, quase uma experiência imersiva em mp3, algo que poderia ter saído de um HD do Boy Harsher, mas veio num tom muito autêntico também. Outro ponto alto é Galina,a que já virou fan favorite. Ela já causa uma angústia por si só, mas ao ler as entrevistas sobre quem de fato foi Galina na vida de Allie X se torna ainda mais desesperadora, você entende aquela revolta de perder algo para o tempo e não vai importar o quanto gritemos ou corremos, ela simplesmente nunca irá voltar. Vale citar também Off With Her Tits que honestamente não consigo pensar em alguém mais com tits suficientes para lançar uma dessas. E caberiam aqui notas para todas as demais canções, mas acho que eu começaria a me repetir demais na aclamação. Esse é de certo um álbum que você ouve e não passa em branco, goste ou não dele em si. 

De certa maneira, consigo ver o Girl With No Face como o Born This Way de Allie (calma): depois de explorar um som inspirado em algumas referências, chegamos em um álbum onde mergulhamos de cabeça nessas referências mas também na profundidade de Allie. Esse é talvez o álbum que ela sempre quis fazer, mas talvez não tivesse as ferramentas, a maturidade ou mesmo o tempo disponível para fazer. Sendo um filho "tardio" de produções que começaram na pandemia, ele se destaca também por ter sido dado tempo ao tempo. Enquanto alguns corriam para produzir e lançar álbuns inteiros durante os períodos de isolamento social, Allie se permitou explorar e estudar cada vez mais seu novo rumo. Agora talvez não rume mais sozinha: ter feito esse álbum quase que sozinha, segundo a própria, foi um desafio que ela criou para si mesma, e talvez não o faça de novo. Mas tudo bem, pois ela conseguiu chegar o mais perto possível de dar nome à garota sem face e encontrar para onde ela irá agora.

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