[MOVIE] Ainda Estou Aqui
É inegável que Ainda Estou Aqui é uma das obras mais importantes do cinema brasileiro nos últimos anos. E com o tempo, possivelmente será possível classificá-lo como a mais importante de fato. E independentemente de quantas estatuetas do Oscar o filme leve, ou eventuais outros prêmios que ainda possam vir, temos tanta história e triunfo numa só obra que é humanamente impossível não se emocionar com todas essas camadas que envolvem o filme.
Importante relembrar que o filme não é um documentário ou tenta ser uma história panorâmica - talvez alguns quisessem que fosse, dado o modo como criticaram o filme. A obra, antes de qualquer coisa, adapta o livro homônimo escrito por Marcelo Rubens Paiva, filho do casal protagonista da obra, e lançado há 10 anos. É óbvio, portanto, que veremos um recorte específico daquela família, naquele tempo. Não é um filme sobre a ditadura, em primeiro lugar. É um filme sobre uma família real, do ponto de visto de um filho que nada mais era que uma criança quando seu pai desapareceu. Minha intuição e empatia ambas dizem que querer medir a dor dessa família e a comparar a qualquer outra é no mínimo perverso - imagine pois alguém que chega ao velório de seu pai e manda um "Bom, eu conheço um cara que o pai sofreu ainda mais pra morrer". Sem tato algum, né?
Posto isso, e voltando ao foco da obra cinematográfica, Walter Salles constrói todo o ritmo e ambientação do filme espetacularmente, de início a fim. Começamos nos empatizando com aquela família feliz, que gosta de música e praia - quem não? Rodeados de amigos e eventos sociais, com o sonho de construir um novo lar e uma filha prestes a ir para o exterior, tudo parece promissor. Mas, mesmo nesse começo, já há uma pincelada de que havia algo de medonho além daquela bolha: quando militares abordam o carro onde uma das filhas do casal está, fica cravada em nossa mente a brutalidade daquele modus operandi.
A poesia visual do filme continua quando militares à paisana entram na casa dos Paiva, e todos aqueles cômodos abertos, iluminados e povoados são um a um jogados em escuridão e silêncio. E nessa cena, assim como em tantas outras, Fernanda Torres brilha com sua atuação corporal. Com poucas palavras, mas muitos gestos e olhares, já sabemos que a tragédia caiu sobre a família. Essa "força contida" se mostra o grande trunfo do filme: Eunice tem cinco filhos para cuidar, e na ausência do marido cabe apenas a ela a função de ser o pilar de seu lar. Seja escondendo algumas informações das crianças, ou em seu silêncio durante um jantar, a pressão que ela retém em suas costas é esmagadora, e machuca a todos nós.
Aos poucos, Eunice recorre a todos os recursos que pode e até tenta os que estão além dela. E o desaparecimento do marido nem é o maior obstáculo em si, mas sim a covardice do método de sumir tão extraoficialmente com uma pessoa. Não há um documento que ligue seu marido aos militares, não há uma testemunha, nenhum caminho judicial. Ela não consegue acessar o dinheiro da família, não consegue realizar o velório que seu marido merece, não consegue manter a vida deles como era. Mas ela consegue, e com muito suor, se reinventar. Sua evolução em uma ativista dos Direitos Humanos é um caminho natural para uma mulher que passou por tudo aquilo, mas não é porque foi uma rota natural que foi fácil - muito pelo contrário.
Acho também que é impossivel não creditar parte do sucesso absoluto que Ainda Estou Aqui é dentro do Brasil ao fato de que todo brasileiro ama Fernanda Torres pelas suas comédias. Ela teve sim seus papéis aqui e ali, mas só de ter Vani e Fátima em seu catálogo, ela com certeza já arrancou diversas risadas de nós todos. E para além dos personagens, os brasileiros também amam ela sendo ela mesma, estando completamente drogada ou não. Assim, ver Fernanda em tela já nos desarma. É um recurso comum que filmes de terror ou drama tenham momentos de riso antes de o filme afundar de vez, para nos destencionar e logo depois chocar. Aqui, nem foi necessário. Em uma atuação tão sutil e poderosa ao mesmo tempo, o filme nos atinge completamente abertos, vulneráveis. São tantos motivos para sentir dor ou cansaço ou revolta com o que está acontecendo, e mesmo exaurida Eunice segue. E nós com ela.
E os tantos feitos e prêmios do filme só reforçam que essa obra tem uma carga única. Inclusive, vejo como extremamente essencial e importante que Fernanda esteja lá fora divulgando um filme sobre um período real e tão cruel de nossa História, e fazendo questão de situá-lo no contexto geopolítico que o mundo estava. Para um norte-americano, não é imediato associar o que acontecia no Brasil com o que acontecia lá, então quando Fernanda diz com todas as letras que a ditadura foi como a Guerra Fria se montou no Brasil, isso só coloca uma carga emocional ainda maior ao filme que talvez eles não fossem sequer cogitar (vide Caroline Polacheck dizendo que queria ter vivido a Tropicália no Brasil, porque seemed so much fun☆~). É um grande lembrete de que esse período não foi um acaso do destino, um azar do Brasil, e sim parte de uma orquestra tão maior, que ignorava como tantas vidas eram ceifadas, direta ou indiretamente, por uma luta que nem havia começado aqui. E fora da América Latina infelizmente há um risco de que esse contexto se perca.
Ainda Estou Aqui é belo por si só, mas com todos esses contextos, a obra é um punhal que vai cada vez mais e mais fundo. E assim como mostra a gravidade de tudo que aconteceu lá, mostra também como ainda carregamos essas feridas não cicatrizadas, conforme o filme avança pelo tempo. É absurdo quantos anos se passaram para que Eunice conseguisse o atestado de óbito de seu marido. É absurdo que tantos detalhes dessa história demoraram ainda mais anos para vir a público, precisando que uma presidenta, que passou por essa exata mesma tortura, instaurasse a Comissão da Verdade praticamente meio século depois que tudo começou. E todos esses militares seguiram impunes, com ruas e cidades batizadas em sua homenagem, e suas filhas e netas recebendo dinheiro nosso mesmo após tanta atrocidade. A impunidade que houve no Brasil quanto à ditadura é certamente a maior diferença de nosso período militar para todos os outros regimes de nossos irmãos latino-americanos. E por mais que um filme não compense tudo isso, ao menos é um canal de reflexão e lembrança.
Num momento em que vazaram planos de um outro golpe militar, o timing de Ainda Estou Aqui é quase divino. É importante saber o que aconteceu, e como aconteceu, de modo que nunca se repita tamanha calamidade. Infelizmente muitos discursos maquiaram e filtraram o regime militar, levando gerações a pensarem que militares são enviados messiânicos incorruptíveis cheios de disciplina, louvor e prestígio, quando na verdade foram covardes, sorrateiros e sanguessugas de um país tão próspero. E ainda são.
E é por isso que uma estatueta não vai mudar a importância e o impacto desta obra. Aqui temos um retrato nu e cru do que foi esse período cruel, que jamais pode acontecer de novo. E mesmo que Eunice não esteja mais entre nós, sua história ainda está aqui. Que ela sirva de luz num período de tantas mentiras e distorções, e que todo o reconhecimento seja dado a Fernanda pela sua exímia atuação. Que toda a batalha de Eunice nos lembre que o povo brasileiro é quem realmente é forte. É o povo que segue mesmo nas adversidades da vida. Que nunca nos esqueçamos da nossa garra, e que lutemos pelos que amamos. Que batalhemos por causas reais, pessoas que estão ao nosso lado, que amamos e nos amam, e não idolatremos bordões vazios e genéricos. Assim como Eunice amou toda sua família, ame você também a sua, cada um deles, como eles são e como querem ser. No fim do dia, quando tiram tudo de nós, é esse círculo que nos resta e nos nutre, e nenhum líder ou ideal pode substituir esse afeto. O mundo vai sempre mudar e por vezes nos ferir, mas que nunca esqueçamos da força do amor genuíno que temos dentro de nós. Nunca.
⭐️⭐️⭐️⭐️⭐️
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