[MOVIE] Nosferatu e Anora: Safadas no topo

Numa review dobradinha, resolvi falar de dois filmes que vi agora em janeiro, mas que em comum têm apenas o fato de serem filmes e terem atores. Mas como ambos estão em hype agora e frescos na minha cabeça, resolvi aproveitar e tecer meus comentários antes que outras obras do Oscar ocupem meu pensamento. Então, apaguem as luzes, coloquem uma música sensual pra tocar e separem o mais caro dos seus vinhos para uma boa leitura.

Nosferatu

Em meio a tantos remakes, spin-offs, reboots, retcons e afins, confesso que absorvi o anúncio de Nosferatu sob a direção de Robert Eggers com um pé atrás... Okay, não é pra tanto, talvez tenha sido um calcanhar pra trás, mas com certeza com um leve receio. Se por um lado o diretor havia conseguido criar tantos takes criativos e imersivos em filmes como A Bruxa e O Farol, por outro havia um medo de termos em mãos mais um caso de filme que tenta recriar um passado do sucesso sem saber atualizar a magia desse clássico. Bom, felizmente Robert Eggers não é qualquer diretor perdido por aí. 


Dado que estamos falando de um filme que é remake de outro de mais de 100 anos atrás, e que por sua vez é extraoficialmente baseado em um livro ainda mais antigo, e todas essas obras tendo sido já tão referenciadas e revisitadas ao longo dos anos, acho que não preciso tomar cuidados com spoilers né? Mas, que fiquem avisados de qualquer modo.

Dos ambientes e vestuários grandiosamente detalhados e críveis até às escalações certeiras, o trabalho feito em cima de Nosferatu é um produto claro do que acontece quando as pessoas amam o que fazem e colocam todo seu cuidado nisso. Os cabelos fazem sentido, as roupas nos contam muito dos personagens antes mesmo de eles soltarem uma palavra, os cenários complementam a narrativa e quando precisam nos jogam em mini-claustrofobias, ou em receio do que está longe de nossa luz.

E falando nisso, o modo como mais uma vez Eggers mostra como medo se constrói sem jump scares baratos (cof cof Sorria 2), e sim com tensão, jogos de planos e luzes e uma sonoplastia eficiente. Há cenas "simples" onde ter menos é mais, e há também cenas grandiosas e amplas, e todas funcionam bem em construir receios e ansiedades. E os atores também seguem na mesma linha, sem precisar gritar e correr a todo momento pra mostrar a agonia que trazem neles. Uma das cenas mais medonhas pra mim, inclusive, nasce basicamente da interpretação corporal de Lily-Rose Deep, em que num misto de delírio, confissão e possessão,  tudo isso ao mesmo tempo, Ellen deixa seu marido apavorado. Mas ele não foge, nem grita até engolir a câmera, e sim combate esse caos que jorra de sua mulher.


O filme não é oficialmente dividido em atos, mas traçando aqui algumas linhas imaginárias, diria que o primeiro ato é o mais fantástico. Desde a cena inicial até quando Thomas cai pela janela do castelo de Orlok, mergulhamos fundo no ambiente que Eggers constrói, em enquadramentos belíssimos, num uso espetacular de sombras e luzes, e também de justaposição das cenas. Amei como alguns momentos parecem ser fever dreams mas sem cair no recurso barato de nos mostrar uma cena impactante ou grotesca pra no fim aquilo ser só um delírio sem consequências pra a narrativa que vem depois. Muito pelo contrário: tanto quanto os personagens, nós ficamos apreensivos com o que está acontecendo ao redor,  na dúvida se foi real ou não,  e sequer conseguimos acompanhar o tempo em que as coisas fluem. As cenas de perseguição no castelo, referenciando os visuais icônicos do filme original,  são magníficas, e por si só já honram todo o remake.

No que seria um segundo ato, que iria desde a viagem de Orlok até quando Ellen recebe dele o prazo de três noites para se entregar, o filme anda um pouco de lado. Alguns motes se repetem, um médico fica indo e vindo entre ciência e ocultismo, e se não fosse a garra de Willem Dafoe em seu papel, e a maestria de Bill Skarsgård em toda a sua postura e linguagem corporal, acho que o carisma do filme poderia até ter desandado aqui.

Já o terceiro ato, que é todo o crescente até a batalha final, felizmente recupera o fôlego e entrega belíssimas cenas. E aqui consigo ver um pouco do trunfo que há no começo do filme, e que faz falta no meio: o uso de cores intensas nos momentos certos, nos tirando daquela Alemanha cinzenta e chuvosa e nos transportando para um novo reino, igualmente mágico e tenebroso.


O que merece muito destaque, e é o grande diferencial do filme para mim, é como a profundidade dos personagens cresce na obra de Eggers, e extrapolam os arquétipos que se criaram sobre eles ao longo dos anos. Ellen está longe de ser uma donzela pura indefesa e quase chega a ser um "auto-nod" à personagem titular de A Bruxa, assim como Thomas não é mais um marido apaixonado (tão) tolinho e que idolatra veemente sua donzela. E claro, o modo como Orlok tem tanta personalidade, avareza e desejo torna ele um vilão mais complexo que simplesmente um demônio que visa apenas o caos. O aprofundamento no teor sexual também é digno de nota, porque é justamente em toda a repressão colocada sobre Ellen que surge o demônio que a artomenta. E por mais que a amarrem, sedem, e quase a asfixiem colocando espartilhos nela para conter suas crises, a natureza de Ellen não se cala e não se sacia.

Em suma, Nosferatu é filme de terror que sabe muito bem de onde vem e onde quer chegar. Apesar de um deslize ou outro, o modo como tudo é tão bem trabalhado e montado não diminui a visão que Eggers tem. Mais ainda (e o que certamente é parte mais difícil de um trabalho criativo) demonstra sua excelência em construir universos ricos e densos. Se você não conseguir ver esse filme no cinema, que vale muito a experiência, reserve uma noite calma e um ambiente bem escuro para apreciar Nosferatu com tudo o que ele tem a oferecer.


⭐⭐⭐⭐☆

Anora

Confesso que, inicialmente, tive uma dificuldade em apreciar Anora. Tinha para mim que o filme seria um drama quase político, mas não fazia ideia que haveria um arco tão grande saído de um filme da Sessão da Tarde. Como comentei na crítica de Ainda Estou Aqui, é comum (e acho super ok) que dramas se usem de momentos de riso aqui e ali para nos desarmar. Então eu esperava que as cenas cômicas de Anora fossem ser um momento específico do filme, e quando vi que estavam durando mais do que eu esperava, fiquei com um grande "ué" na cabeça. Aviso, essa review contém spoilers também.


Mas dois motivos me fizeram repensar no filme e também montar esse texto. O primeiro é Mikey Madison, cujo trabalho eu já tinha adorado lá em Pânico, e aqui tem todo o espaço e tempo que merecia para mostrar do que é capaz. E o segundo, sendo sincero, é porque minha bolha do Bluesky adorou o filme e eu considero muito a opinião dos meus amigos (🫶). Lendo algumas entrevistas do diretor e de Mikey, e absorvendo um pouco mais das ideias do filme, consigo dizer que encontrei os meios de apreciá-lo.

Um dos pontos mais fortes do filme está no quão bem ambientado e estilizado ele é. As festas, casas e restaurantes todos são únicos e passam sua mensagem muito claramente. E dado como temos tantos momentos coloridos no filme, seria fácil tudo virar um grande borrão de luzes néon e fumaças, mas a vibe do HQ onde o filme começa é completamente diferente das festas de Vegas e são completamente diferentes do restaurante onde vários quarentões estão curtindo um anoitecer de karaokê. Na mesma linha, cada personagem tem roupas, cabelos, sotaques e trejeitos que em poucos segundos de cena nos mostram com facilidade quem eles são. Inclusive, meus parabéns a quem teve a ideia de dar a Mikey seu fairy-hair-tinsel, eles caem como uma luva na personagem, que em momento algum abre mão dele ou de suas longas unhas.


Outro ponto forte, senão o mais forte, é a atuação de Mikey no papel de Anora. A personagem é cheia de personalidade, e não tem medo de gritar, espernear, surtar quando precisa, mas também sabe atuar muito bem com muito pouco em cenas mais contidas. Pra mim, um resumo dessa maestria, é quando após passar mais de meio filme correndo atrás de seu marido, ele finalmente volta a ficar sóbrio e deixa claro pra ela como todo aquele casamento não passou de uma diversão, de um programa estendido. Mudando completamente de postura, Anora volta à persona profissional, voltando para sua voz mais fina e delicada e jogando o cabelo de lado. Anora ficou de lado, Ani voltou a tomar as rédeas. E esse momento também nos faz perceber o quanto a atuação de Mikey foi evoluindo ao longo do filme. Sua personagem foi se desarmando aos poucos pelo filme, de modo que mal notamos como ela estava diferente, mas aqui nesse momento percebemos como quase que tivemos duas personagens na tela.

Ainda, um filme que encaixa um gemidão do zap no meio de sua sonoplastia (ainda que indiretamente, graças à Slayyyter) merece algumas estrelas, né?

A cena final também é um excelente momento, num plano tão contido e sem cor, e quase nenhuma fala. Mas com atuações excelentes de Mikey e Yura Borisov, somos inundados de compaixão pelos dois personagens. Depois de um filme de tantas paletas, cenários e surtos, o mini-plano-sequência nos encanta com calma, vulnerabilidade e maturidade. 

Talvez, porém, não consiga achar o filme em si todo aquele mousse. Ainda acho que ele troca demais de gêneros dentro de si, e acaba desequilibrando um pouco a duração desses momentos, mas sendo tão bem filmado e escalado, ele se sustenta no final das contas. Tomara que esta seja uma plataforma que lance Mikey ao estrelato global definitivo porque ela mergulha de corpo e alma nos seus papéis, fazendo drama ou comédia ou terror com excelência. Só torço pra que não a lance tanto a ponto de levar nesse ano a estatueta de melhor atriz. Perdão, Mikey.


⭐⭐⭐☆☆

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